segunda-feira, 17 de maio de 2010

AMPUTAÇÃO: UMA VISÃO MEDICO-SOCIAL PARA A “LEGIÃO DOS MUTILADOS”

AMPUTAÇÃO: UMA VISÃO MEDICO-SOCIAL PARA A “LEGIÃO DOS MUTILADOS”

No último dia 15 de maio O Globo publicou um artigo dos mesmos autores de uma memorável página da medicina do Rio de Janeiro, intitulada “A Legião dos Mutilados”. Essa publicação provocou, em 05/05/2000, uma verdadeira revolução no tratamento das complicações que podem atingir os pés dos diabéticos, complicações essas conhecidas como Pé Diabético. Sob sua inspiração, o Ministério Público Estadual, através de uma Ação Civil Pública, desencadeou, inicialmente no município do Rio de Janeiro e posteriormente no Estado do Rio de Janeiro, uma mudança da visão “hospitalocêntrica”, então em vigor, com a evolução para a descentralização e hierarquização dos cuidados com os portadores de diabetes, através da adoção do Projeto de Atenção Integral ao Portador de Pé Diabético.
Esse projeto, implantado no município entre outubro de 2002 e abril de 2003, e ainda carente de finalização ao nível do Estado, proporcionou, segundo informações da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, uma redução de mais de 50% no número anual de amputações altas realizadas nos hospitais públicos municipais até o ano de 2006. Outro dado altamente positivo da utilização do projeto pode ser extraído da planilha Impacto dos Procedimentos de Média Complexidade do Ministério da Saúde onde se verifica que em relação à realização de um procedimento ligado ao controle do Pé Diabético, o “curativo com desbridamento de pé diabético”, a produção do Estado do Rio de Janeiro, com cerca de 14 milhões de habitantes foi, em 2007, quase duas vezes maior que no Estado de São Paulo, com aproximadamente 40 milhões de habitantes, indicando diagnósticos e tratamentos mais eficientes nos níveis primários e secundários da atenção à saúde.
A lógica do vitorioso projeto foi a aplicação de princípios básicos de educação e atenção, advogados por consensos internacionais de cuidados com os pés de diabéticos, nos sistemas municipais e estaduais de saúde. Foram treinadas equipes nos Postos de Saúde e criados Pólos Secundários especializados, geridos por protocolos de referência e contra-referência e regulados por centrais específicas de controle dos encaminhamentos. No município do Rio de Janeiro o treinamento alcançou equipes em todos os postos e centros municipais de saúde e criou dois centros secundários de atendimento nos então Hospitais Municipais da Lagoa e do Andaraí (o projeto previa a criação de quatro centros). No Pólo Secundário de Pé Diabético do Hospital Municipal da Lagoa foram atendidos, até o primeiro semestre de 2006, 2199 diabéticos com lesões avançadas nos pés e pernas, com um índice de internação de apenas 10%, e uma queda na taxa de amputações altas de 42% para 21% entre todos os pacientes submetidos ali submetidos a amputações. No Pólo Secundário do Hospital da Lagoa também funcionou, à época, um programa pioneiro de ortetizações, com a confecção de calçados especiais para os pacientes com deformidades importantes e amputações parciais nos pés, ação que diminui em mais de 70% a possibilidade de reulcerações e reamputações nos portadores de pé diabético.
Infelizmente o posterior retorno desses hospitais à Rede Federal de Hospitais do Rio de Janeiro levou à inativação ou à redução drástica dos atendimentos regulados nessas unidades hospitalares, com a conseqüente quebra do acesso e deficiência absoluta de atenção secundária, não resolvida até hoje pela saúde municipal. Essa nova realidade interferiu diretamente no tratamento dos diabéticos ao eliminar a possibilidade de se impedir a evolução da doença, forçando o retorno à única porta de acesso possível, a emergência, na qual paciente só consegue ser atendido nos últimos estágios da doença. Levou também à diminuição da motivação e parcial desmobilização da rede primária, que deixa de ter acolhidos seus encaminhamentos aos Pólos Secundários. Soma-se a essa desconcertante e cruel situação a mais recente invenção da saúde pública do Rio de Janeiro, a criação da triagem prévia ao atendimento de pacientes diabéticos com lesões nos pés em alguns hospitais de emergência, recusando-os, sem sequer examiná-los, com a alegação de que não há cirurgião vascular de plantão ou de que o hospital faz apenas atendimentos de alta complexidade. O recrudescimento das amputações altas no município do Rio de Janeiro é o resultado direto dessas omissões e ações impensadas.
Por outro lado, a luta pela atenção integral não acabou e, pelo contrário, tem somado apoios e parceiros. Recentemente, a Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular criou sua Coordenação de Ações Sociais, que incorporou o modelo de Atenção Integral ao Portador de Pé Diabético como seu programa oficial, com a intenção de lutar por sua implantação e disseminação a nível nacional, tanto no meio médico como em diversos setores representativos da sociedade. O retorno do Sindicato dos Médicos a essa luta é muito bem vindo, com a lembrança de que a idéia de um grande centro para atender múltiplas doenças, como um possível Instituto de Doenças Vasculares, pode gerar a dificuldade de se priorizar o atendimento do Pé Diabético, misturando consultas mais e menos urgentes e específicas para os diversos tipos de agravos de saúde.
Outra importante forma de luta diz respeito à participação das associações de pacientes e de outras entidades voltadas para a defesa dos interesses dos diabéticos. Sua presença permanente facilita a educação contínua de diabéticos e familiares e propicia a conscientização e a aderência ao tratamento da doença de base, incentivando os cuidados específicos para evitar suas complicações. No Rio de Janeiro, a Associação Carioca de Diabéticos tem se empenhado na batalha pelos direitos dos diabéticos, e em particular pela atenção específica ao portador de Pé diabético. A campanha DE OLHO NO PÉ, agora também uma ação oficial da Sociedade de Angiologia e Cirurgia Vascular, procura sensibilizar as autoridades da saúde pública estadual e municipal para a necessidade de projetos descentralizados e inseridos nas principais diretrizes do SUS: integralidade, regionalização, hierarquização e regulação. A simples obediência a esses parâmetros na assistência às doenças crônicas em geral e, em particular, às complicações do diabetes mellitus trará qualidade e eficiência ao serviço público, diminuindo o abismo que hoje separa os níveis de atenção e proporcionando prevenção e tratamento adequado a essa população, além de substantiva melhora de sua qualidade de vida.


JACKSON SILVEIRA CAIAFA
Presidente-Executivo da Associação Carioca de Diabéticos
Coordenador Nacional de Programas Sociais da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cir. Vascular - SBACV
Membro do Projeto Diretrizes da AMB/SBACV
Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e da SBACV